A noite tá tão bonita hoje

Como eu ia dizer que aquela mulher na sua frente tinha visto gente passando fome, perdendo casa, assistindo a polícia levar embora um fogão fudido de velho, lágrimas; tinha visto jovem sendo preso, agarrado pelo pescoço; gente virando o olho de tanto crack, pedindo cigarro, pedindo ajuda, pelo amor de Deus, me ajuda. Eu na sua frente. Uma mulher que viu muita coisa, mas não viu tudo, claro que não, nenhuma mulher viu tudo. Papo bosta vai, vem. São Paulo, essa desgraça que deixa a gente com ódio e tesão por qualquer motivo. Qual é a minha cor favorita?, pergunto. Preciso fingir que sou uma dessas garotas que você pode levar pra casa, foder, trocar figurinha no WhatsApp no dia seguinte, tudo lindo e certo. Meu joelho encosta no seu sem querer embaixo da mesa. Estamos apertados. O casal ao lado se beija. Não somos um casal, não somos nada. Penso nos inúmeros psiquiatras, na morte, nas dores que não podem ser contadas assim na primeira noite. O mais são dos seres humanos pode parecer um psicopata creepy da porra só com uma frase mal calculada. É a minha cara fazer isso. Parecer uma desajustada perdida nos próprios argumentos ou piadinhas ruins. Uma mina que viu muita coisa, mas que não te viu sem roupa, não sabe onde você mora ou o que faz exatamente. Sobre o que as pessoas conversam num primeiro encontro? Sobre ex, sobre trabalho, quantos anos você tem mesmo, qual seu signo, blá. Preciso parecer normal. Você precisa parecer normal. O lugar está quente, tiramos os casacos. Seu cabelo é bonito, você é bonito, barba feita, baita camisa. Um drink, duas cervejas e a gente se beija. Minha calcinha fica molhada do nada. A noite tá tão bonita hoje. Azul. Minha cor favorita é azul e, eu sei, me meti numa cama de gato de novo.