como me tornei uma bruxa na escola

Débora Lopes
2 min readSep 23, 2022

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foto: mélissa juan

usei meus dois reais pra comprar tudo em pirulito que deixa a língua azul. escondi sorrateiramente o saquinho branco de papel dentro do casaco do uniforme e fui pra sala de aula porque o sinal já havia batido. enquanto eu ultrapassava a porta, senti alguém me pegando pelo braço com força. era o ceará, um moleque loiro com olhos sinistros que até então tinha trocado pouca ou nenhuma ideia comigo na escola em que eu acabara de chegar. ele me pediu um pirulito e eu disse não. ele pediu de novo, mas não gostei do puxão no braço, não vou dar. passei a vida toda apanhando dos meus irmãos. não, porra, não vou te dar a desgraça do pirulito. me dá, pô, ele falava. e eu só repetia não, não vou dar, não dou. até que eu sentei no meu lugar e ele enfiou a mão dele à força dentro do meu casaco e puxou um pirulito.

a professora entrou na sala e começou a dar aula. eu fiquei quieta, chupando o meu pirulito da língua azul e o ceará chupando o dele, que era meu. a gente se olhava e se mordia com os olhos. em dado momento da aula, quando começou aquela várzea de colégio público, que é uma mistura de feromônio dos moleques insuportáveis com falatório irrefreável com a professora pedindo pra geral calar a boca com gente arremessando coisa na lata de lixo com a professora pedindo pra sei lá quem ler alguma coisa, enfim, nesse momento de hormônios juvenis e educação, o ceará veio até a minha mesa. ele abriu a boca e mostrou a língua. eu tava pouco me fodendo pra língua azul dele. mas não era isso que ele queria me mostrar.

o ceará abriu a língua e ela estava cheia de cortes e cheia de sangue.

olha o que você fez, sua bruxa, você cortou a minha língua toda. bruxa maldita.

eu tranquei a respiração, fiquei desacreditada e me mantive em silêncio.

ele passou o resto da aula me chamando de bruxa. os amigos dele apontavam pra mim, faziam cara de ameaça e também riam. eu continuei em silêncio, mas, dessa vez, fingindo prestar atenção no que a professora dizia.

no fim da aula, ele veio de novo me chamar de bruxa e a minha vontade era voar pra cima dele e chamá-lo de desgraçado maldito idiota. eu não era bruxa nenhuma. mas eu tinha medo e fiquei quieta mais uma vez.

ceará passou o ano letivo inteiro me chamando de bruxa toda vez que me via. era um inferno. no último dia de aula, resolvi pedir uma trégua e fui até ele na hora do recreio. ele me olhou com aqueles olhos sinistros e, com um sorriso leve, falei: quer um pirulito, ceará?

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