fiquei doente de rato

Débora Lopes
4 min readNov 4, 2019

meu pai era guitarrista e tocava com seus amigos na garagem de casa todos os sábados. eu me botava a assisti-los sempre, ainda que não gostasse do rock. eu também dançava e chacoalhava muito a cabeça, eu gostava de dançar, mas não gostava do rock. quando enjoava ou quando a garagem começava a feder a suor, eu corria pra minha mãe e ficava vendo ela fazer as unhas ou batendo bolo. ela pintava sempre de vermelho e eu achava bonito. toda vez que ela perguntava por que eu não estava na garagem, a resposta era: eu não gosto do rock. de rock, ela corrigia.

não tinha muita coisa pra fazer, e eu ia pra rua. lá, encontrava os moleques e me sentia viva. gostava de rir e de caçar ratos. a gente ia até uma casa recém demolida e andava entre os entulhos. o desafio era ficar agachado ali de 15 a 20 minutos até aparecer um rato e, então, corríamos em busca do bicho — que disparava tonto em zigue-zague e, nesse dia, pulou no meu pé. senti uma queimação na canela e gritei que o rato me queimou. os meninos riam. comecei a chorar e fui pra casa aos prantos na maior velocidade que meus pés alcançavam. o rato me queimou, o rato me queimou, soluçava, enquanto minha mãe ia buscar um copo de água sem entender o que eu estava falando. quando acalmei, disse que o rato da casa abandonada me queimou. ela abaixou minha meia e lá estavam três buracos. dois em cima e um embaixo. ele te mordeu, minha mãe disse. soltou o cabelo, tirou o avental e me puxou pelo braço. eu chorava muito. mais de raiva dos moleques do que de dor. ela abriu a porta da garagem e nesse minuto a banda parou. um rato mordeu a menina, falou, enquanto meu pai apertava os olhos em nossa direção, contra a luz que a lâmpada do quintal emanava. a garagem estava escura. minha mãe saiu em disparada e andamos quase 20 minutos até o hospital. chegando lá eu acalmei o choro, mas ainda tava com raiva dos moleques porque eles riram de mim. é muito fácil rir da única menina da rua. malditos. idiotas. retardados.

no domingo de manhã um deles tocou a campainha de casa e eu logo saí gritando que eles eram uns retardados e que não queria falar com ninguém nunca mais. falei VAI SE FODER VOCÊS.

passei o domingo ouvindo os discos da gal costa que meu pai tinha, emburradíssima no quarto. nunca mais vou sair na rua, nunca mais vou falar uma palavra, estou com ódio de todos, ódio de todo mundo.

de noite, li uma pixação num muro perto da padaria: maluquete society (que pronunciei sociéti). quando falei a frase em voz alta dentro do carro meu pai gritou meu nome e me mandou calar a boca. engoli o choro e nunca entendi o que tinha demais na frase maluquete society. vinte anos depois eu fui entender que talvez meu pai tenha achado que eu falei boquete no lugar de maluquete. naquele dia eu prometi que nunca mais falaria uma palavra. faria um voto de silêncio eterno e nunca mais ninguém gritaria comigo. idiotas. eu nem sabia o que era boquete.

na manhã da segunda-feira eu acordei com os olhos grudados sem entender nada. tateei até a pia do banheiro e joguei água até que eles descolassem. quando abri os olhos, tinha muita remela em tudo e eles estavam vermelhos por dentro. imaginei que estava doente de rato.

quando consegui enxergar melhor, arranquei uma folha do caderno e escrevi “estou doente de rato”. entreguei pra minha mãe, que logo se assustou com os meus olhos vermelhos e remelentos. meu pai estava sentado à mesa e, quando pegou a folha de caderno, deu uma risada alta e depois passou a mão na minha cabeça. desde aquele dia fiquei sem falar uma palavra durante dois anos. até que encontrei meu pai morto dentro de casa.

vesti jeans e camiseta para enterrar meu pai. eu tinha 13 anos. em casa, a irmã da minha mãe cozinhou um macarrão e fritou batata frita para mim e meus dois primos. comemos em silêncio. minha mãe não comeu. ela também não chorava, e eu não entendia o motivo.

no banco de trás do carro, fui olhando as pessoas na rua e pensando que elas não estavam tristes como eu, pois não estavam enterrando o próprio pai. senti inveja e quis ser qualquer uma delas andando por ali. quando vi uma garota de mão dada com o pai no ponto de ônibus, senti muita vontade de chorar e chorei. chorei em silêncio. eu não balbuciava uma sílaba sequer há dois anos, nem quando estava sozinha. eu não falava nem mesmo nos meus sonhos.

no velório, todos me abraçavam e diziam que ia ficar tudo bem, mesmo sem
nenhuma garantia de que fosse verdade.

em dado momento minha mãe me conduziu com delicadeza até o caixão. com as mãos nas minhas costas ela me obrigava a ver meu pai morto.

quando cheguei perto e o vi de terno e gravata dentro do caixão, tive vontade de falar. e depois de dois anos e alguns meses ou dias, abri a boca e disse: você fica ridículo com essa roupa.

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