Fumando com um dominicano no subsolo, mas não só

Débora Lopes
3 min readJun 25, 2019

Vento de cortar a cara e eu com o casaco de lã vermelho/bordô que comprei num brechó na avenida principal. Tive de usar sem lavar – o que, para quem me conhece ainda que pouco, é uma lástima, pois sou exigente com as roupas dos mortos, tenho meus rituais, Pai Nosso, sal grosso sendo esfregado nas mãos antes da água correr, enfim, pressupor que energias positivas moram ali jamais. Minha garganta pegava e comprei pastilhas de própolis, o que também não aprecio, mas naquela noite tudo valia. Desci na estação La Latina – nome propício – envolta no último fio de orgulho que me sobrava e fui recebida por olhos muito claros e um sorriso safado, mas amoroso. Fome, falei. E fomos comer tapas. O sabor sugerido foi alcachofra e, bom, quem sou eu para dizer não. É a primeira noite, talvez eu precise ser agradável, soar aprazível, esconder minhas frescuras com alimentos que me lembram animais ou pinturas rupestres, coisas com patas, muitos galhos, até mesmo brócolis já foi difícil pra mim, parecem arvorezinhas, coisa sinistra. Complicado equilibrar o charme e a alcachofra entre os dentes – que tarefa árdua para uma mulher que come feio como eu. Hoje mesmo pensei que tentar dropar café sem açúcar é uma afronta para minha criação. Família de pobre nem sabe o que é café sem açúcar. Tento, padeço, quero me sentir adulta, paladar desenvolto, uau, mas só me resta o amargo e uma saudade dantesca da doçura.

Alcachofra comida. O destino era um antigo cinema pornô que agora abrigava um bar com ares de cinema antigo. Sem o pornô. Tomei uma taça de vinho e o clima ficou ruim. Sou ótima no anticlímax das coisas. Quase profissional. "What a lovely night", mandei, brega demais, vergonha agora, arrependimento, talvez. "Not bad", ouvi, enquanto sentia o barulho da destruição emocional percorrer o meu corpo backgroundeado pelos gritos do meu cérebro falando "filho duma puta cornooooo você nem é tão bonito ok". Tentei superar o baque do coice com uma golada feroz no vinho. Pedi outro. Deus, cuida de mim porque esse corno aqui do lado não está cuidando, como o senhor mesmo pode presenciar. Fui devidamente agarrada para saciar minha ânsia por papo furado bosta (com o objetivo único de beijar uma boca qualquer, verdade). É um esporte. Não preciso gostar nem querer. Flertar é um esporte. Quase uma bobagem. Zero consequência, apenas tesão momentâneo.

O terceiro round foi num boteco gangueiro surreal e escuro onde conheci um dominicano e um mano de outra nacionalidade que agora nem lembro. Fumamos na escada do subsolo. Eu metia um portunhol sem vergonha pois já estava bem bêbada, sei lá quantas taças de vinho branco depois. Política, refúgio, expatriação, relações diplomáticas, nacionalismo. Ele só me olhava conversar com os caras e sorria, provavelmente pensando "piranha desenvolta ou boa menina que se comunica bem". Na hora de ir embora o vento estava ainda mais cortante e, além duma mão dentro da cueca e outra dentro da calcinha, nada mais aconteceu. Estávamos completamente bêbados. Completamente. Quis ir embora sozinha, insisti. Trançando as pernas, parei numa barraca de pedaço de pizza. Um cara me chutou. Xinguei ele e saí andando enquanto queimava a língua com o queijo quente. Lovely o caralho, ótima noite esquisitíssima.

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