memórias da repórter que fui um dia
ajusto o volume com cuidado pra não borrar a unha. hoje vou visitar uma prisão. estou com o coração angustiado desde a hora que acordei. e acordei dum sonho ruim, que misturava rato e pássaro morto. acordei suada, quase mijando nas calças, quase mijando na cama, o cabelo colado no pescoço, a camiseta úmida.
sempre, sempre acordo de sonhos ruins – o que me faz constatar que meu inconsciente foi contaminado pela vida real, que nem lá eu tenho paz, que nem lá eu sou capaz de desfrutar da beleza das cores e da magia de um mundo feliz. não existe mundo bonito pra mim. hoje eu visito uma prisão.
o uber entrecorta as ruas do ipiranga e, entre pizzarias e pet shops de fachadas pixadas, sinto que algo está vazando. checo meu crachá no pescoço, começo a tatear minha própria roupa, o banco do carro, tento buscar o olhar do motorista pelo retrovisor, será que ele se ligou que isso tá acontecendo?, mas não. continua com um olhar apático, atento aos faróis por mera obrigação e dando seta. sinto que nenhum motorista de uber é feliz. abro a mochila na esperança de achar um casaco, uma bandana, coisas que sempre carrego desnecessariamente e que agora poderiam me ajudar a conter a lambança que meu corpo produz. dou um gole na água já quente que carrego comigo na esperança de que surja uma ideia boa nos próximos segundos, mas nada vem. sinto vontade de chorar e percebo que já estou chorando. e estou chorando muito. agora é mais mooca do que ipiranga. estou indo visitar uma prisão. meu corpo fica repentinamente muito fraco, que porra é essa meu deus, estou com vergonha. e medo. engulo a saliva forte, franzo a testa e preparo o tronco como quem vai interpelar alguém. eu vou. estou muito fraca agora. sinto que vou apagar. toco de leve o ombro direito do motorista:
– moço, você pode parar o carro? tomei um tiro e estou sangrando.