mulher de botas douradas e vestido branco de linho sujo de sangue em cima de um cavalo originalmente branco

botas douradas no deserto parece algo muito bonito e visualmente inspirador, mas não é prático. entra areia dentro. eu usava um vestido branco e estava em cima de um cavalo originalmente branco, mas já um pouco manchado da terra de antes e da areia de agora. eu procurava um bar. inocentemente, eu procurava um bar no deserto.
estava sem ergometrina, a única substância capaz de fazer o meu útero pós-parto parar de sangrar e te adianto, nesta carta-email, que sangrar num longo tecido branco de linho é um acinte à moda ecológica sustentável nacional.
assim que encontrei o boteco no deserto, peguei meu revólver e apontei em direção ao homem do balcão. os outros homens que ali bebiam ficaram calados. essa foi a maneira mais educada de lhe pedir um copo de água sem a menor chance de ouvir uma negativa.
com a garganta molhada saí do bar e já estava dentro da minha última escola. lena e laís não mudaram absolutamente nada. sei que assim que esse flashback acabar as garotas bonitas da sétima série A vão terminar barangas cheias de filhos, com maridos de sapatênis que trabalham no banco, transando uma vez por mês, e eu estarei livre pela vida, sem filhos, viajando pelo universo. ouvindo buzzcocks, que seja, stones. sem dever satisfação a nada e a ninguém, apesar de ter vivenciado um sangramento caótico causado pelo pós-parto imaginário. mas disposta a rapar minhas economias da conta bancária e cair no mundo com as minhas botas, aprender a falar "franja" em espanhol antes de sair para cortar ao cabelo e mijar sozinha pelas ruas de barcelona porque bebi demais.
isso não é nenhuma rivalidade feminina. todas nós escolhemos os nossos futuros. eu nunca desejei nenhum mal a elas, só estou dizendo que as nossas somatórias deram resultados diferentes e foi isso que nos fez passar ou não no vestibular dos sonhos alcançados.
depois de comer um risoles na cantina da escola, vi uma TV ligada e estava passando o atentado de 11 de setembro ao vivo. eu usava uma camiseta com os dizeres "fui para a pousada do rio quente e lembrei de você". ganhei da minha tia. eu já tinha 15 anos e era meio inaceitável vestir essa camiseta de dormir na escola, mas aconteceu assim e há beleza nos fatos crus que nossos sonhos nos apresentam.
e quando saio da escola e começo o caminho para casa me transformo de novo na mulher ensanguentada de 25 anos que acabou de apontar uma arma na direção de um homem inocente. a primeira coisa que sinto é um grande alívio por não mais ter 15 anos. que horrível a adolescência, a fase mais dolorida da vida.
porque na adolescência você ainda pode ser inocente. já se transformar num adulto burro é uma cagada.
na adolescência você pode trocar longas cartas de amor e acreditar cegamente que a paixão move o mundo e as pessoas; que existe um amor definitivo para você; que seu trabalho é uma paixão; que ganhar dinheiro é fácil; que a autorrealização está a um passo (inserir aqui risos altos); que espiritualidade é idiotice; enfim. a infância serve para imaginarmos e a adolescência serve para sonharmos. a vida adulta aparece já em formato de chinelada na cara pra você parar de ser trouxe e covarde.
não há nada que a vida adulta não mate.
e não pense que nesta carta-email estou sendo muito sóbria, nossa, como ela é cabeça, muito focada na honestidade da vida real. não. estou sendo pura e simplesmente 100% condescendente com o que vejo e sinto. pé no chão.
tentando lembrar o que é que eu tenho em touro. talvez marte. se pá mercúrio.
volto a ser a mulher de botas douradas e vestido branco de linho sujo de sangue em cima de um cavalo originalmente branco que teve sua pelagem manchada, do codilho a soldra. o cavalo está todinho em outra cor. se eu tivesse uma foto anexava aqui. mas estava sem malas no deserto e a única coisa que eu poderia carregar seria um maço de cigarros enfiado na bota, mas até mesmo no sonho eu me podava dos meus desejos.
a areia começava a brigar com as minhas meias e aquela sensação de sujeira ia me desgastando emocionalmente. perdi as contas de quantas vezes tirei os sapatos, virando-os de ponta-cabeça e dando batidinhas na bunda e nada. não existia deusa na terra que tirasse aquelas cracas de mim. eu estava predestinada a carregá-las comigo até o fim da vida.
quando acordei e realizei que eu não era mais a garota de 15 anos assistindo aos ataques de 11 de setembro na TV da escola nem tampouco a mulher de vestido branco e botas douradas no deserto, olhei para o relógio e me dei conta de que mais uma vez estava fodendo a minha vida com um relaxante muscular brutal que me fez dormir demais, sonhar desequilibradamente, ignorar meus oito alarmes e perder uma entrevista importante com uma fonte. isso tudo foi uma constatação e fez muito sentido, realmente, era a vida real sendo cruel de novo, nada anormal –– exceto uma única bota mezzo enfiada no meu pé esquerdo.