ovos caipira, desinteresse e uma noiva bêbada

Débora Lopes
3 min readMar 30, 2021

tudo o que vejo da minha janela são dois estacionamentos e uma quadra onde as pessoas correm com crianças ou jogam futebol. nunca basquete pois aqui é brasil e não há cestas, apenas traves. estou pelada escrevendo este texto e, minutos antes, pensei no verso "pau é que nem chiclete. depois que perde o gosto, esquece" e constatei uma verdade sobre mim: quando eu perco o interesse é definitivo. exceto por ovos caipira de galinhas criadas soltas — que fiquei enjoada e não comi por seis meses, mas depois voltei ––, meu desinteresse é feroz.

uma grande amiga se casou. fui convidada para ser madrinha. na festa, porém, protagonizei uma cena lamentável. ela, a noiva, ficou bêbada e me ofendeu gratuitamente no fim da noite. na época, fiquei pensando o que a conduziria a tal comportamento, visto que ela estava prestes a vivenciar sua noite de núpcias, embora eu lá saiba se isso tem alguma importância. eu também estava bêbada. eu estava em outra cidade. eu gastei dinheiro com vestido, manicure, presente, gasolina e hotel para ser madrinha daquele casamento, daqueles amigos que eu amava e, de repente, que tragédia. eu fiz malabarismos para sair mais cedo do trabalho e chegar a tempo em outra cidade. que tragédia. não foi só uma ofensinha ou um comentário bosta pelo qual eu poderia passar ilesa. ela metralhou coisas que não tinham a menor importância no momento.

àquela altura, a maior parte dos convidados já havia ido embora. estávamos em uma rodinha de amigos íntimos do casal, gente que eu não conhecia totalmente, mas bebericávamos uma garrafa final de uísque, prestes a ir embora e deixar os noivos a sós quando ela limpou a garganta, bateu no peito e anunciou algo com o corpo, se preparando para contar uma grande história. aos risos e com a voz mole de bebida, ela mencionou uma viagem que fizemos e passou a falar coisas sobre mim. coisas ruins. coisas que ela desaprovou no meu comportamento, que julgou "distraído" e "imaturo".

as pessoas me olhavam sem graça. eram quatro da manhã. por que aquilo virou um assunto, meu deus?

não me lembro como agi na hora. talvez eu tenha acendido um cigarro no outro, pedido desculpas pelo pecado mortal de ser uma mulher temporariamente distraída e engolido aquela derrota a seco. fui embora com o rabo entre as pernas, de maquiagem borrada e salto alto na mão pronta para pagar uma nova fortuna no táxi de volta ao hotel.

e, quando acordei pela manhã, chorei de soluçar.

ela nunca me pediu desculpas por isso. e eu nunca tive a oportunidade de pedir desculpas de volta. eu nem sei se ela se lembra desse momento. deve ter sido pior para ela desembuchar aquilo tudo na noite do próprio casamento. para mim, era só mais uma situação de merda para guardar na minha coleção de situações merda.

nos vimos outras vezes. viajei até o nordeste para visitá-la. com o tempo, nossa aproximação foi minguando, apesar de ainda nos darmos um oi de vez em quando. mas perdi o interesse e perdi feroz.

e o casamento deles acabou.

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