quando conheci um skinhead

desci do elétrico e corri. um porque era mais de meia-noite. dois porque qualquer coisa poderia aparecer no meu caminho. qualquer. uma assombração, um facho, um amor. deveria ter tirado a gilette da bolsa e enfiado dentro da bochecha. poderiam me roubar tudo, mas não o que estava dentro de mim.
a vila prudente à noite tem essa nuance d'os karas, meio sinistra, desenhada com rabisco canetado no papel em branco, preto, azul, tudo soturno, meio HQ.
eu havia acabado de sair de um festival de punk próximo ao parque ibirapuera. ainda vivia o êxtase de ver as bandas que gostava, de encontrar meu lugar no mundo, de usar minha saia xadrez, minha meia preta até o joelho, camiseta de banda tosca, cinto de arrebite. eu nem sabia, mas o punk estava mudando tudo na minha vida. tudo o que penso, sou e acredito vêm do punk. o punk me salvou. eu poderia ser uma direitista de merda, dessas que se fode a vida inteira e ainda acredita em meritocracia e político/empresário de sucesso. que defende a gentrificação da cidade em prol do bem-estar da população. que fala que comer carne faz parte da natureza humana. que respeita os gays, mas discorda da "escolha" deles. eu tinha 15 anos e plena consciência da entrada do feminismo e do punk como um modo de vida eterno pra mim.
O PUNK ME ENSINOU TUDO O QUE SOU
eu e minha amiga descemos do busão elétrico ainda cantando. em êxtase adolescente. um festival de punk era uma injeção de política, arte e adrenalina na veia de jovens mulheres feministas no início dos anos 2000. surpresa ou não, foi um moleque da escola que apareceu na nossa frente pela rua. ele e o irmão. era tarde da noite. os dois usavam roupas parecidas. calça e jaqueta jeans bem ajustadas ao corpo. camiseta branca. sapato preto. cabeça raspada. o moleque da escola, então, cruzou nosso caminho e disse: "punks de merda. eu vou pegar vocês". ficamos atônitas. então, o cabeça raspada da escola era um nazista. "foda-se, seu nazi de merda", gritamos.
era surreal, mas estava acontecendo. corremos. gritamos e corremos. éramos punks, mas não éramos trouxas pra apanhar de dois homens — que, mesmo sem pelo no saco, ainda eram homens.
e foi assim que eu descobri que eu e um skinhead estudávamos na mesma escola pública na zona leste de são paulo.
CONTINUA…