sou uma mulher-hotel

muita gente passa por mim. fazem fotos das minhas melhores acomodações, mas nunca do meu esgoto, do meu lado sujo. meu verde é apátrido. não gosto de parecer daqui, prefiro soar chique, viajada, internacional, mas, no fundo, sei que sou barata, cafona. meus vidros são fumê, meus móveis estão batidos, meus lençóis puídos.
já abriguei muitas traições, brigas, pedidos de casamento e de divórcio –– e até um crime. tenho ratos intravenosos, por isso tantos gatos no jardim. nem todo hóspede gosta dos bichos.
é muito difícil agradar quem chega.
sou constantemente dilacerada por quem passa por mim. me arranham, me batem, me usam enquanto são felizes. depois, vão embora. todos vão embora de mim. sempre.
já vivi meus tempos de glória, de luxo, décadas douradas, prateadas. sempre tudo bagunçado, mas com gerência. não tenho dona nem dono. são sócios. são muitos. precisaria contar nos dedos para afirmar quantos.
gostam de morar em mim porque aqui a louça está sempre lavada, a cama arrumada, o banheiro limpo, o café da manhã é sempre impecável, ainda que o almoço e o jantar não sejam meu forte. tenho muito álcool, deixo muita gente loucaça. mas não gosto de ver a decadência depois. já quebraram vasos dentro de mim, camas, atiraram copos pelo corredor. insultos, gritaria, bateção de porta, ameaças aos recepcionistas, caso de polícia. fico triste quando isso acontece. choro.
entendo que essa movimentação mostra que eu, mulher-hotel, sou viva. muita coisa acontece, muita gente entra e sai. mas tive um dia trágico, horrível.
o dia em que um homem matou uma mulher dentro de mim.