tirando a calcinha da bunda e um pinscher triste

Débora Lopes
4 min readAug 22, 2020
imagem via Synctopia

ele me ligou para dizer que tem bebido café de madrugada e que hoje precisou preencher um formulário de vaga de emprego em que se fazia necessário escolher adjetivos que o descrevessem. contou que escolheu "exagerado", pois seria muito hipócrita colocar apenas coisas boas.

eu, honestamente, não ligava para nada do que ele dizia. estava entretida vendo um velho e uma mulher conversando na calçada e tendo dificuldades pra se entender porque ela usava uma máscara que abafava muito a voz.

"mas você é exagerado", respondi, com voz de qualquer coisa, enquanto cutucava uma craca que nasceu na minha nuca. a mulher e o velho não eram visualmente atrativos, mas eu gostava de ver o cachorro dela. um pinscher velho e completamente emburrado por ter de esperar o papo dos dois acabar.

"você pode citar um exemplo que comprove que sou um homem exagerado?", ele retrucou, provocando um virar de olhos inevitável em mim.

estou de calcinha e camiseta na mini sacada do meu apartamento, sem saco pra amaciar ego em sofrimento de homem que não aquece mais o meu coração.

o pinscher olha o horizonte com tristeza. eu olho o pinscher com tristeza. tiro a calcinha da bunda.

vamos para doze ou treze anos atrás, acredito. eram seis da manhã de um domingo. eu havia dormido muito mal por culpa de uma cólica diabólica e insistente que me perturbou a madrugada toda. não houve ácido mefenâmico, bolsa quente ou chá de hortelã que desse trégua.

devo ter adormecido por volta das cinco da manhã. até que acordei com o meu celular vibrando. era ele pedindo que eu saísse de casa urgente pois precisávamos conversar. saí totalmente desacreditada, remelenta, de pijama, indignada. o dia estava branco, cinza, horrível. fazia frio.

"o que você tá fazendo na minha casa às seis da manhã?", perguntei, brava. e fiquei ali, prostrada, encostada no portão, presenciando aquele homem barbado completamente bêbado explicando que passou a noite no bar e beijou uma mulher. eu fechei o portão em silêncio e ele gritou "calma, calma, precisamos conversar".

e não.

"nós não precisamos conversar, cara, nós não precisamos nada. você é quem precisa. você saiu, bebeu e achou que tinha o direito de vir até a minha casa me acordar. eu não quero saber de absolutamente nada que você fez ou deixou de fazer. eu preciso dormir. vai pra puta que te pariu."

tiro a calcinha da bunda.

o pinscher parece mais triste agora.

não tenho vontade de falar sobre amor.

não há nada de errado com o amor em si.

fico em silêncio e ele pergunta de novo se não tenho nenhum exemplo para justificar que o acho exagerado. sem humor para relembrar esse dia bosta do portão, apelo: você diz que, se ganhasse um milhão de reais hoje, doaria tudo.

ele ri.

que, se fosse um animal, seria um gato exótico de pelo curto;

que, se tivesse de escolher entre morrer num submarino ou morrer na lua, escolheria nunca ter nascido;

que, se pudesse voltar no tempo, voltaria para o útero da sua mãe;

ele ri de novo.

estou chateada.

não quero falar sobre essas coisas. sobre o quanto o conheço e sobre o quanto meu amor por ele morreu, foi embora, virou poeira no espaço, partículas ínfimas de algo que um dia foi muito grande, com cores fortes, vívidas, quentes. e acabou. hoje, virou qualquer coisa.

você já se pegou cheirando a pessoa que você ama e achando que aquele cheiro é a melhor coisa que o seu nariz já sentiu? é como se o ar não fosse tão importante. aquele cheiro é a essência da sua força. é o que te faz abrir os olhos pela manhã e, antes de pensar em fazer cocô, ler as notícias, checar o e-mail ou passar um café, é aquele cheiro que você deseja sentir, respirar forte, se aninhar ali. é uma mistura de vida, de amor, de loucura, de algo muito grande que sai rasgando o peito, a pele, as desgraças mentais, tudo. aquilo é amor. aquele cheiro é amor. e não importa se é segunda, terça, quarta ou quinta-feira. é aquele cheiro que você quer todo dia. todos os dias até a morte. é aquele cheiro que você quer sentir se alguém vier te avisar: olha, você está morrendo. é o cheiro que te traz pra realidade quando você está se debulhando em lágrimas porque perdeu –– porque foi derrotadx pela vida, porque te demitiram, porque te rejeitaram, porque você não conseguiu o que queria –– e a pessoa que você ama te segura e te dá aquilo que ela nem sabe que está dando: o próprio cheiro.

e no dia em que acordei e não senti mais que esse cheiro de vida existia nele, acabou. separamos os livros. dividimos as plantas.

e agora eu abro um semi-sorriso ouvindo ele rir ao telefone enquanto observo o pinscher levantar e mexer o rabinho freneticamente pois está feliz indo pra casa. a conversa acabou. o amor acabou. eu também acabei.

eu acabo um pouco a cada amor que acaba.

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